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Microsoft Word - Document16

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Microsoft Word Document16 Infância desvalida trajetória educacional das acolhidas pelo asilo de órfãs da Santa Casa de Misericórdia de Campinas Ana Maria Melo Negrão1 PUC CAMP Resumo Este artigo objet[.]

Infância desvalida: trajetória educacional das acolhidas pelo asilo de órfãs da Santa Casa de Misericórdia de Campinas Ana Maria Melo Negrão1 PUC-CAMP Resumo Este artigo objetiva perquirir quais as repercussões da educaỗóo recebida pelas acolhidas no Asilo de ểrfós da Santa Casa de Misericórdia de Campinas, sob os cuidados e propostas educacionais das Irmãs de São José de Chambéry, fundado para amparar centenas de órfãs desvalidas, em razão da epidemia de febre amarela que assolou Campinas em 1889 Busca este estudo detalhar o ideal de formaỗóo desejado na instituiỗóo para as meninas, bem como os destinos das asiladas Por falta de políticas públicas de atendimento, o Asilo de Ĩrfãs configurou-se como uma estratégia de política educativo-social, na elite campineira excludente, integrada pelas categorias sociais dominantes - Igreja, Imprensa e Oligarquia - representando para Campinas o único local de acolhimento às órfãs pobres e, em especial, às negras As fontes constituem-se, basicamente, pelos anrios da Provedoria, livros de matrículas das órfãs, documentos e fotografias acervo da Santa Casa de Misericórdia, biblioteca Centro de Memória da UNICAMP, cadernos e, em especial, depoimentos de egressas a relatar como refletiu em suas vidas a educaỗóo recebida sob a ộgide Congregaỗóo de Sóo José de Chambéry Palavras-chave: Asilo de Órfãs da Santa Casa de Misericúrdia; crianỗas desvalidas; proposta educacional; histúria oral Doutora pela Faculdade de Educaỗóo/UNICAMP, Pesquisadora CMU; Professora de Sociologia Jurídica da PUC-Campinas e Coordenadora Curso de Direito/UNISAL/Campus Liceu Salesiano/Campinas E-mail: anamarianegrao@terra.com.br REVISTA MÚLTIPLAS LEITURAS 51 Very poor childhood: educational proposal by the Orphanage Asylum of Santa Casa de Misericórdia of Campinas Abstract This article aims inquired what the impact of education received by the received Orphan Asylum, Santa Casa de Misericordia de Campinas, under the care and educational proposals of the Sisters of St Joseph of Chambéry, founded to support hundreds of helpless orphans, because of the epidemic yellow fever struck Campinas in 1889 Search this study detailing the training you want in the ideal institution for girls, and the destinations of asylum seekers For lack of public policies on attendance, the Orphan Asylum was configured as a strategy for education and social policy in Campinas exclusive elite, composed of the dominant social categories - Church, Press and Oligarchy - representing the only place to Campinas to host orphaned and poor, especially the niger The sources were, basically, by the Institucional yearbooks, enrollment of orphaned books, documents and photographs from the collection of the Santa Casa de Misericordia, library, Memory Center, UNICAMP, notebooks, and in particular, statements with alumni reporting reflected in their lives to education received under the aegis of the Congregation of St Joseph of Chambéry Keywords: Orphanage Asylum of Santa Casa de Misericórdia; very poor childhood, educational proposal, oral history Infancia desvalida: trayectoria eduacacional de las acogidas por el orfanato de la Santa Casa de Misericordia de Campinas Resumem Este artículo tiene el objetivo de inquirir cuáles fueron las repercusiones de la educación recibida por las niñas huérfanas al ser acogidas en el Orfanato de la Santa Casa de Misericordia de Campinas, bajo los cuidados y propuestas educacionales de las monjas de São José de Chambéry fundado para amparar centenas de huérRevista Múltiplas Leituras, v 3, n 1, p 50-69, jan jun 2010 REVISTA MÚLTIPLAS LEITURAS 52 fanas desvalidas, por razón de la epidemia de fiebre amarilla que asoló Campinas en 1889 Este estudio busca detallar el ideal de formación, para las niđas, deseado en la institución, asimismo, los destinos de las niđas hrfanas Por falta de políticas públicas de atendimiento, el orfanato se configuró como una estrategia de política educativo-social , en la elite de Campinas excluyente , integrada por las categorías sociales dominantes- Iglesia, Prensa y Oligarquía – representando para Campinas el único lugar de amparo a las huérfanas pobres y, especialmente a las niđas negras Las fuentes de esta investigación se constituyen básicamente, por los anuarios de la Provedoria , libros de matrículas de las huérfanas, documentos y fotografías del acervo de la Santa Casa de de Misericordia, biblioteca del Centro de Memoria de la UNICAMP, cuadernos y, en especial, testimonio de egresas al relatar cómo reflejó en sus vidas la educación recibida bajo la égida de la Congregación de São José de Chambéry Palabras clave: Orfanato de la Santa Casa de Misericordia – niñas desvalidas – propuesta educacional – historia oral Introduỗóo Este artigo adveio de um viộs doutoramento e pautou-se, em especial, nas falas das egressas Asilo de Órfãs da Santa Casa de Misericórdia de Campinas-SP, que, em um exercício de memória, reviveram a infância asilada, com o objetivo de verificar a educaỗóo adotada em uma instituiỗóo total, sob a ộgide da Congregaỗóo de Sóo Josộ de Chambốry Um caminho foi trilhado mediante entrevistas com cerca de vinte egressas Asilo, entre 65 e 85 anos, cujas histórias de vida, sonhos, lembranỗas, traumas, contradiỗừes, permitiram tecer o cotidiano da instituiỗóo, complementando o que os documentos silenciavam Solicitar s egressas que atravộs da memúria relatassem suas lembranỗas tempo Asilo, significou reviverem parte da infância e adolescência, sob o olhar de um novo tempo, capaz de matizar as vivências passado com as cores presente Na realidade, narrar fatos configurou-se de um lado como a presentificaỗóo de um passado escondido, velado, adormecido por trás da cortina esquecimento ou não interesse de revelar; porém, por outro lado, houve um processo de construRevista Múltiplas Leituras, v 3, n 1, p 50-69, jan jun 2010 REVISTA MÚLTIPLAS LEITURAS 53 ỗóo e reconstruỗóo da prúpria histúria, perpassando pelo estigma da orfandade, e articulaỗóo da formaỗóo educacional com o destino que lhes era reservado na complexa teia de desafios sociais As vozes das informantes projetaram mais luz s representaỗừes, clareando como viam esse microcosmos, mundo fechado em que viviam, com seus sonhos, medos, esperanỗas, carờncias, peraltices, e como se relacionavam com o mundo externo, através das visitas de familiares, de protetores, ou de pessoas generosas que para afluíam Quanto às identidades das entrevistadas, foram utilizadas apenas as iniciais e configurou-se como um processo dinõmico de construỗóo, perpassando pelo estigma da orfandade, e pela forma como articularam a formaỗóo educacional recebida na instituiỗóo e o destino que lhes era condicionalmente reservado na complexa teia de desafios sociais na caminhada pús-instituiỗóo (NEGRÃO, 2004) Como pano de fundo, permaneceu o espírito filantrópico de uma cidade estratificada, porộm com significativa facỗóo aristocrata, que, por meio da Irmandade de Misericórdia, fundou, em 15 de agosto de 1890, o Asilo de Órfãs da Santa Casa de Misericórdia, como uma estratégia emergente educativo-social, para acolher as órfãs desvalidas, impedindo-as de mendigarem ou prostituirem-se, face devastadora epidemia de febre amarela de 1889, que reduziu a populaỗóo de Campinas a um terỗo O Asilo de ểrfós supriu a ausência de políticas públicas de atendimento a meninas desprotegidas e configurou-se, na elite campineira excludente, integrada pelas categorias sociais dominantes - Igreja, Imprensa e Oligarquia - o único local de inclusão às órfãs pobres e, em especial, às negras, excluớdas da maioria das instituiỗừes de ensino Inquirimos se esse atendimento orfandade era estratégia de escamoteamento da realidade em cotejo com as formas históricas da sociedade elitista reproduzir preconceitos, privilégios políticos e religiosos Lapa (1995, p 224-225) referindo-se ao Asilo de Órfãs, declara que subjacente filantropia, o trabalho tinha conotaỗóo escravizadora: Por trỏs, portanto, aparato filantrúpico, por todos celebrados, estavam objetivos bem racionais e práticos, próprios de uma sociedade capitalista, capaz de transformar o Asilo numa escola de treinamento e formaỗóo de empregadas domộsticas e futuras e laboriosas esposas de operários produtivos ( ) A rotina da vida em comum no Asilo era absorvida pelo trabalho chamado doméstico, que se distribuía entre os cuidados com a Revista Múltiplas Leituras, v 3, n 1, p 50-69, jan jun 2010 REVISTA MÚLTIPLAS LEITURAS 54 roupa, ao arranjos da cama e mesa, cabendo-lhes lavar a roupa, engomar, consertar, costurar Todos os serviỗos ligados cozinha, banheiros, etc tambộm cabiam s órfãs, sob a superintendência das irmãs Trabalho pesado na infância Ci.: Tinha limpeza de sala de aula, porque a parte colégio não tinha funcionário, só tinha lavadeira e cozinheira Então, essa parte de limpeza, de faxina, era tudo a gente que fazia, tudo dividido Então, uma turminha era prá limpar o banheiro, outra turminha era prá varrer a sala de aula, outra turminha era prá limpar o dormitório, outra turminha limpava os banheiros de cima Só as internas Os trabalhos domộsticos pesados institucionais exercidos pelas meninas asseguravam a manutenỗóo hegemônica da classe que as dominava ou preparavam-nas para servir como esposas devotadas e habilidosas M.B.: Eu ficava orgulhosa de prestar serviỗos para as freiras Eu sabia passar roupa muito bem e, uma vez, para a Procissão de 15 de agosto, passei e engomei 78 vestidos de saia pregueada e gola marinheiro, que era o uniforme de gala das internas Nem todas as meninas tinham habilidades, mas eu bordava, passava roupa, e chegava a fazer cinco trabalhos pra exposiỗóo que se fazia pra vender artesanato Um dia a Irmã falou: “M.B., vai até a porta da cozinha da Santa Casa.” Fui preocupada, pensando que ia ser castigada por alguma coisa, mas era para limpar os lustres da Santa Casa para as festas Às vezes, ajudava nos doces para as festas da Nossa Senhora da Boa Morte Ficava contente por ter sido a escolhida e, muitas vezes, ganhava um cálice de vinho, quando acabava o serviỗo Pela fala de M.B o trabalho excessivo – “passei e engomei 78 vestidos das internas” - era apresentado sob a aparờncia de uma imposiỗóo natural, como preceituam Bourdieu e Passeron (1992), acompanhada de manifestaỗóo de pseudo-afeitividade, de prêmio ao ser contemplada com um cálice de vinho, o que a deixava contente Para M.B o ser escolhida – “para limpar os lustres da Santa Casa para as festas tinha a conotaỗóo de privilộgio Esses serviỗos reiteravam manutenỗóo status quo pauperismo, os quais justificavam a tratativa dicotômica pertinente ao trabalho doméstico exigido apenas das internas e não das alunas externato2 Uma das depoentes relata: M.H.: Às vezes, recebia convite para passar o dia de domingo Integrando o complexo físico da Santa Casa , havia desde 1876 uma prédio destinado a Asilo, porém era utilizado como Escola para alunas externas regulares, embora o ideal fundador, Padre Vieira, fosse desde logo destinado Orfandade Revista Múltiplas Leituras, v 3, n 1, p 50-69, jan jun 2010 REVISTA MÚLTIPLAS LEITURAS 55 em casa de alguma família, até mesmo conhecida de meu pai Mas, a visita era para trabalhar como empregada: lavava louỗa, limpava a cozinha, o banheiro, varria tudo, enfim, o passeio era trabalho Na realidade, pessoas da sociedade simulavam, como gesto filantrópico, propiciar passeio a troco serviỗo domộstico gratuito, ao qual M.H nóo ousava insurgir-se, pois a formaỗóo institucional preceituava que devia servir a Deus, através homem, com polidez, humildade, submissão, obediência e temor a Deus Traumas que trancendem a infância M.H.: Nas férias, ficava sozinha no Orfanato, pois meu pai precisava trabalhar Fui internada no orfanato porque minha mãe teria morrido Na verdade, ela o abandonara, fugindo com minha irmãzinha de dois anos Só soube disso mais tarde com 21 anos, quando no dia de meu casamento em 1959, minha mãe apareceu na Igreja Foi um susto, pois ela que era morta, de repente surgiu viva Imagine como foi minha lua de mel, em que eu só pensava na minha mãe que apareceu no dia meu casamento Mais tarde, tive contato com minha irmã e soube que minha mãe tivera outros filhos com seu companheiro Como soube meu casamento, quis me ver, por isso, sem me avisar, surgiu na igreja Nóo dỏ para descrever a sensaỗóo que tive Nunca soube porque ela abandonara meu pai, e quando quis conversar com ela sobre isso, minha irmã impediu, pois ela estava muito doente com câncer Nunca me libertei disso, até fiz terapia, tive bons empregos, mas meu casamento fracassou e sou infeliz Por esse relato, transparece a fraude na internaỗóo de M.H pelo descumprimento da condiỗóo imprescindớvel de ser úrfó, e no ato de admissão ter de apresentar atestado de óbito, nos termos regimentais Como teria conseguido seu pai interná-la? A angústia jamais deixou M.H cujas seqüelas súbito aparecimento da mãe que a abandonara nunca foram superadas Procissão As procissões tradicionais de 15 de agosto, dia da Padroeira, Nossa Senhora da Boa Morte, espiritualizavam o ambiente externo, fazendo a apologia das ideologias católicas, legitimando-as no sentido de expor publicamente um ritual santificador (Capelato, 1988), com as órfãs brancas vestidas de anjo, jamais as negras, em manifesta contradiỗóo norma regimentar institucional: ART 15 - As orphós seróo tratadas sem distincỗóo uma das outras( ).” Revista Múltiplas Leituras, v 3, n 1, p 50-69, jan jun 2010 REVISTA MÚLTIPLAS LEITURAS 56 Se o prúprio Regulamento impedia qualquer discriminaỗóo, a tratativa dada às órfãs negras, ficou bem delineada no depoimento de uma delas: Ci.: A gente saía de vestidinho branco, sapatinho preto, meinha e cabelinho bem cortado, sempre uma religiosa lado grupo, e a procissão fazia a volta todinha na cidade Quem se vestia de anjinho na procissão eram as escolhidas Quer dizer, as pretinhas nunca iam sair de anjo, porque não existia anjo preto, assim as Irmãs nos ensinavam Então, nós, que éramos negras, tínhamos consciência que não poderíamos ser escolhidas, pois a gente não existia Elas nunca mostraram um anjo preto, nunca comentaram sobre um anjo preto A gente se conformava e não reclamava porque acreditávamos que negra não podia mesmo ser anjo Figura 01: Procissão de 15 de Agosto Fonte: Acervo De Biasi As órfãs, vestidas de anjo, conotavam signo de inocência e pureza, relevante ao catolicismo, pois a vestimenta, com batas brancas e imensas asas, as coroas de flores, as mãos postas a percorrer as ruas da cidade, eram eficazes estratégias para angariar donativos e legados Reprimendas Embora fosse a procissão de 15 de agosto a data mais solene da Santa Casa, como demonstraỗóo pỳblica de fộ e homenagem padroeira, nóo faltavam situaỗừes de contraste, face a alguma travessura das internas Revista Múltiplas Leituras, v 3, n 1, p 50-69, jan jun 2010 REVISTA MÚLTIPLAS LEITURAS 57 Der.: Na procissão eu ia de uniforme branco e sapato preto e as meninas me chamavam de “pomba de perninha preta” Aí eu não queria ir na procissão Um dia na classe, a freira estava mandando todo mundo parar de conversar e disse: “Quem der um pio não vai sair na procissão.” Eu, no fundo da sala falei: “Piu!” e aí fiquei de castigo até a procissão terminar Mas costumava sair de anjo e sempre usava vestido cor-de-rosa A personalidade de Der destoava da submissão e medo dos castigos aplicados quando se infringiam as normas disciplinares A maioria sujeitava-se às regras, embora o verdadeiro rosto de alguma crianỗa deixasse de ser o da coletividade, deixando cair a máscara da obediência irrestrita, tanto mais tempestuosa ou insolente fosse a sua reaỗóo Peraltices, travessuras, traquinagens permearam o cotidiano da instituiỗóo, (Lefộbvre, 1958), como marcas fortes da memúria e demonstraram reaỗừes infantis polớtica educacional das Irmós, de amoldar todas as úrfós a uma formaỗóo padronizada, homogờnea, reiterada pelo relato de R.G R.G.: Aplicavam castigo nas mais levadas, mas não era assim uma coisa exagerada Quando as freiras queriam assim descobrir alguma travessura, alguma malvadeza que as meninas faziam, sabe o que elas faziam? Pegavam uma galinha que estava chocando e punham dentro de um cesto Me recordo que as freiras fizeram isso, na época da procissão, uma vez que a C.P e a Dru brigaram e uma picou o vestido da outra com uma tesoura ficando um monte de pano em tiras Aí as freiras queriam saber quem fez aquilo e arrumaram a tal da galinha para a gente passar a mão nela A história era assim: Cada uma passava a mão na galinha Se a galinha cacarejasse foi aquela que aprontou Na vez da C.P., a galinha fez cú-cú-cú Foi vocờ mesmo, disse a freira Aớ C.P comeỗou a chorar e as freiras chamaram o pai dela A estratộgia ameaỗadora das Irmós em colocar uma galinha choca para, através de seu cacarejar, desvendar a autora da traquinagem de deixar em tiras o vestido da colega revelou um aspecto psicológico medo Ao que parece, a autora da travessura deixou transbordar o seu nervosismo na forỗa incontrolada para passar a mão na galinha Para castigar uma menina, a galinha choca aliou-se ao processo punitivo O que teria levado C.P a ter tido tal explosão de revolta a ponto de picar o vestido de Dru.? Decodificaỗóo de foto das úrfós Revista Múltiplas Leituras, v 3, n 1, p 50-69, jan jun 2010 REVISTA MÚLTIPLAS LEITURAS 58 Uma foto datada de 1919 explicitava prêmio de bom comportamento ostentado ao redor pescoỗo, na missa de domingo a fitinha vermelha a qual motivava o aperfeiỗoamento contớnuo, nos termos processo formativo de moldes franceses Figura 02: Grupo de Órfãs Asilo da Santa Casa de Misericórdia - 1919 Fonte: Acervo de Maria Luiza Pinto de Moura Como fotos possuem uma linguagem, cuja decodificaỗóo fornece elementos de interpretaỗóo de prỏticas educativas, a foto de grupo de órfãs permitiu analisar a ordem, a disciplina rígida, o silêncio e o ficar imóvel, tendo como pano de fundo a porta de entrada Asilo de Ĩrfãs já numa trajetória de vinte e nove anos Em destaque, no último plano, na sétima fila, sobressaem as Filhas de Maria3, mulheres mais adultas, com suas largas fitas e medalha sobre o peito, detendo o controle grupo Pelo traje das crianỗas, botas, vestidos de gola marinheiro sobre a qual algumas ostentavam as fitinhas vermelhas - símbolo bom comportamento semanal -, infere-se que essa foto foi tirada em domingo, antes ou depois da missa Não há órfãs negras ocupando a primeira e segunda fila, situando-se, de preferência, próximas às extremidades das demais filas, dildas no grupo Fotografar em domingo, contrapondo meninas com fitinhas vermelhas ao redor pescoỗo ao lado das que nóo as receberam, revela que as meninas que se comportaram mal deveriam postar-se na primeira fileira Seria esse o motivo de semblantes tão tristonhos? Não se nota qualquer sorriso em qualquer rosto, porém semblantes sérios A foto grita as diferenỗas, jỏ que a fitinha era sớmbolo de representaỗóo de cumprimento dos deveres, e atitudes sem deslizes ou peraltices de crianỗa As Filhas de Maria pertenciam a um grupo da Igreja que primava pelo cultivo de valores evangộlicos, muita pureza, castidade, oraỗóo e espiritualidade Revista Múltiplas Leituras, v 3, n 1, p 50-69, jan jun 2010 REVISTA MÚLTIPLAS LEITURAS 59 Embora a fotografia seja datada e paralisada em 1919, não é uma imagem neutra Por trás de seu aspecto mudo e silencioso, esta fotografia fala, explode numa linguagem semiútica, prenhe de representaỗừes, permitindo uma leitura ampla dos significados que de implícitos, vão se desfraldando, revelando-se superfớcie explớcita Alộm da preocupaỗóo com a divisóo de planos, tanto na horizontalidade, como na verticalidade, estão presentes as representaỗừes de padronizaỗóo; de unidade (Baudelot e Establet, 1975); de ausência de sorriso para uma infância submissa, de disciplina, de segregaỗóo da úrfó negra, de respeito advindo traje discreto e com mangas compridas, nada deixando entrever corpo exceỗóo rosto, como preceituavam os termos regimentais Os depoimentos abaixo da órfã T.G., que sentia pena de quem não ganhava a fitinha, e de Der., a qual jamais merecera a fitinha vermelha, subsidiaram a decodificaỗóo da fotografia, em relaỗóo ao significado disciplinador da fitinha, e quanto ao dia em que foi tirada, conforme elucida Dubois, (1999, p 26) quando diz que “subsiste na imagem fotográfica um sentimento de realidade incontornável qual não conseguimos nos livrar, apesar da consciência de todos os códigos que estão em jogo e que se combinaram para sua elaboraỗóo. Der.: uma das meninas mais velhas ficava com um caderninho marcando quem fazia alguma coisa errada e eu sempre tinha um monte de cruzinhas Quem não tinha cruzinha ganhava fita vermelha de bom comportamento Um dia entregaram uma fitinha para mim, talvez por terem esquecido de marcar as cruzinhas Aí fui na missa de Domingo com a fita, e bem no meio da missa, a Irmã Virgilina percebeu, foi e tirou a fita T.G.: Alguma que estava sem fita ficava no fim da fila chorando Eu tinha dó daquelas meninas sem fita, na missa domingo Ah! Tinha aquela pretinha, a M.T., levada da breca que dava em todo mundo E ela nunca levava fita porque batia nos outros Pelas representaỗừes castigo na infância, muitas órfãs evocaram o salão nobre imponente, localizado no andar superior com seus janelões de madeira, emoldurados com belas cortinas, suntuoso lustre, mesa longa rodeada de cadeiras, tantas quantas necessárias para as reuniões da Irmandade, da Provedoria, e festividades Lr.M.: Era aquele salão onde ficavam aquelas pessoas que tinham morrido O salão nobre! E aquela que falar qualquer coisa vai para o salão nobre, dizia a freira E cada uma que ia de castigo, contava que viu o quadro mexendo Era fantasia! Era aquela coisa de medo! M.H.: Senti medo de ficar de castigo, no escuro, no salão dos Revista Múltiplas Leituras, v 3, n 1, p 50-69, jan jun 2010 REVISTA MÚLTIPLAS LEITURAS 60 retratos antigos As meninas maiores diziam que saía fogo dos olhos e das bocas das pessoas dos retratos De tanto medo fazíamos “xixi” na calcinha e não ousávamos abrir os janelões Qualquer arte e ficávamos presas ali; porque não guardávamos o silêncio nas refeiỗừes ou no serviỗo diỏrio Der.: Fui de castigo no salão nobre, com as portas e janelas fechadas, no escuro Como estava com medo, resolvi abrir as portas e janelas Uma das freiras viu a janela e a porta abertas e correu nas classes avisar que o inspetor estava lá, porque só abriam o salão na visita inspetor As freiras comeỗaram a ensaiar as crianỗas: Boa tarde, senhor inspetor” e uma se lembrou de tirar-me castigo por causa da presenỗa inspetor Descobriram que nóo havia inspetor nenhum e eu, a Der que tinha aberto as janelas Paradoxalmente, no lugar onde se davam as reuniões da benemerência também se inculcava o medo, o terror, E daí as vozes mudas pela morte e os olhos abertos pela mão dos pintores, criavam vida crianỗa trancafiada naquele cỏrcere McLaren (1992,p 234-235) reitera que o castigo escolar s crianỗas, freqỹentemente funcionava num nớvel simbúlico para dar ao estudante uma antecipaỗóo que pode ser esperado pelos imprudentes que transgridem as regras ( ) e, ainda com uso constrangimento tomava a forma de reprimendas para diminuí-lo, esvaziando seu senso de seguranỗa ou identidade Para as úrfós, o salóo representava o espaỗo da puniỗóo, levando ao nóo controle esfincteriano De tanto medo fazíamos ‘xixi’ na calcinha e não ousávamos abrir os janelões” As pessoas reproduzidas nos retratos, aos olhos das órfãs, até se mexiam, cujo medo, hoje, transmuda-se em fantasia- “E cada um que ia falava que viu o quadro mexendo Era fantasia!!” Pitoresco o depoimento de Der., que representava um comportamento liberto das repressões, pois abriu as janelas, insurgiu-se contra o proibido, burlando as freiras, que providenciaram o cumprimento aos inspetores, que deveriam estar chegando, com - “Boa tarde, senhor inspetor” e uma delas se lembrou de tirar-me castigo por causa da presenỗa inspetor Eram rotineiras as insubordinaỗừes de Der Decorre daớ o conflito entre a rotina diária Asilo e o ideal que as freiras tentavam simular inspeỗóo escolar, corroborando para se desenhar a atuaỗóo da congregaỗóo, com ờnfase na disciplina rớgida, na pedagogia medo, na religióo que castiga, na castraỗóo da sexualidade Tudo isso gera o cultivo de um “hábitus”, conforme Bourdieu e Passeron (1992, p 44): A aỗóo pedagúgica (AP) implica o trabalho pedagúgico (TP) como trabalho de inculcaỗóo que deve durar o bastante para Revista Múltiplas Leituras, v 3, n 1, p 50-69, jan jun 2010 REVISTA MÚLTIPLAS LEITURAS 61 produzir uma formaỗóo durỏvel; isto ộ, um hỏbitus como produto da interiorizaỗóo dos princớpios de um arbitrỏrio cultural capaz de perpetuar-se apús a cessaỗóo da AP e por isso se perpetuar nas práticas dos princípios interiorizados Banhos Nos banhos comunitários, transparecem a repressão e a complexidade da higiene corporal, ao lado de sensaỗừes gostosas, e as representaỗừes por elas construớdas para iluminar a apreensão daquele contexto Ci.: Os banhos? Tinha uma sauna enorme, uma espécie de ducha como um esguicho Era um cano e fazia um arco como se fosse a costela da gente Então entrava lá, abria, água quente e fria, molhava inteirinha Cada uma tinha uma camisola de banho, decotadinha e sem manguinha A gente molhava, entravam ou ali naquele arco, saía e ia se ensaboar, em rodízio Enfiava a mãozinha por dentro para se lavar com sabonetinho Banho! duas vezes por semana, porque não tinha espaỗo Se faltasse ỏgua no hospital, a gente tomava banho frio no tanque, maior que essa sala As freiras eram conservadoras Para vestir não podia mostrar o joelho Um pudor exageradớssimo! Irmó Aurộlia, avanỗada para a ộpoca, falou: Vocờs vóo tomar banho Tem que lavar o lugar que faz xixi”, foi fogo! Desabou o Colégio! Acho que nós rimos quase uma semana R.G., I.G., T.G.: (três irmãs partilhando a fala) O banho, naquele tancão, parecia uma piscina Ai, que gostoso! Tomávamos banho de camisolão, ninguém podia ver nada Era uma pureza tremenda E quando ia ficando mocinha, tomava separado, no arco para não manchar a água com sangue Nós trocávamos de roupa e ninguém via o corpo uma da outra Puxỏvamos o lenỗol por cima da cabeỗa, e nos trocávamos E a camisola molhada a gente tirava sem mostrar o corpo T.J.C.: Na sala, a Irmã falava: “Quem vai tomar banho na ducha?” Algumas levantavam a mão e saíam Não entendia nada, só depois soube que meninas menstruadas não entravam na tina, no tancão, para não manchar a água, por isso iam para a ducha Os tancões nos outros dias eram usados para lavar roupa Quando não tomávamos banho, às vezes, tínhamos que mostrar o fundo da calcinha para a freira ver se estávamos limpas, pois tínhamos que ter asseio, saber se limpar bem com papel não sei que papel Acho que era jornal, não me lembro se tinham papel higiênico Pela fala das meninas, o banho era adstrito a rígidas regras para coibir o gozo da água em contato com o corpo, vez que uma camisola neutralizava o tato, a dimensão sensorial Nos ensinamentos relacionados violência simbólica de Bourdieu e Passeron (1992), e a camisola de banho era um signo que transmitia mensagens de recato e pudor, com o fim de moldar o comportamento da órfã, refreando-lhe os instintos maléficos moral cristã e aos bons costumes Essa forma de inculcar doRevista Múltiplas Leituras, v 3, n 1, p 50-69, jan jun 2010 REVISTA MÚLTIPLAS LEITURAS 62 minaỗóo nem sempre era percebida pela úrfó Todavia, em contraponto, o banho era também um momento de prazer, com se percebe, claramente, pelo enunciado – “O banho, naquele tancão, parecia uma piscina Ai, que gostoso!” A expressão “Ai, que gostoso!” estỏ carregada de agradỏvel lembranỗa a ponto de igualar o tancão a uma piscina, onde o grupo se divertia, sentia o contato da água, enfim era um momento de asseio e lazer O asseio corporal ficava relegado a um sabonetinho, discretamente esfregado no corpo, coberto pela camisola, e como declara uma das meninas, ocorria duas vezes por semana Em todas as falas hỏ representaỗóo impedimento de visualizar o corpo Até para se enxugar e vestir-se, havia rituais reprimindo qualquer prazer tanto em tocar com em vislumbrar o corpo O camisolão, além de estratégia para não ver o corpo, favorecia o hábito de saber vestir-se com pudor, mediante adequados movimentos gestuais “É de um pudor, que não podia ver nada”.Inferimos que a memória de todas grupo remetem às mesmas evocaỗừes A fala das trờs irmós Era uma pureza tremenda deixa entrever que na educaỗóo institucional abdicava-se corpo como se ele não fizesse parte da estrutura ontológica ser humano, reprimindo-se o auto-conhecimento corpo, para não macular as virtudes da alma Como a congregaỗóo estava sob os auspớcios ideal ultramontano e das orientaỗừes rớgidas Ratio Studiorum, das Mỏximas de Perfeiỗóo, conhecer o corpo poderia estar comprometendo esse ideal Pelo relato de T.J.C – ter que mostrar o fundo da calcinha para a freira ver o asseio, evoca uma situaỗóo arbitrỏria de constrangimento, ou repercussừes de hábitos franceses de utilizar poucos banhos semanais Pela fala de Ci.: Irmó Aurộlia, avanỗada para a ộpoca, falou: Vocờs vão tomar banho Tem que lavar o lugar que faz xixi”, foi fogo! (risadas) Desabou o Colégio!” desabrocha uma Irmã progressista, sinal de contraste naquele contexto repressor, a tal ponto que a sua fala “lavar o lugar que faz xixi” foi inusitada e quebrou o arcabouỗo de vedaỗóo de toque na genitália Podemos nos valer de Lefèbvre (1972) que preceitua serem as escolas consideradas centros moleculares de poder, onde se processam essas relaỗừes de poder Deriva desses centros a possibilidade de LEFÈBVRE, H, na sua obra La vida cotidiana en el mundo moderno Madri: Alianza, 1972, propõe uma nova conceituaỗóo de revoluỗóo, que ocorre, no cotidiano, quando se quebram amarras, preconceitos, tradiỗừes, podendo partir de uma ỳnica pessoa, como sinal de contraste, e motivando as demais Revista Múltiplas Leituras, v 3, n 1, p 50-69, jan jun 2010 REVISTA MLTIPLAS LEITURAS 63 revoluỗóo, uma vez que na instituiỗóo, em havendo as relaỗừes de poder, existe a possibilidade de questionỏ-las, refazờ-las, como fez a Irmó A Representaỗừes da Sala de Aula Muitas lembranỗas das salas de aula emergiram nas história vividas, algumas boas, outras ruins No térreo, havia seis salas de aulas: quatro para as externas e duas separadas para as internas, o que demonstrava discriminaỗóo As salas eram amplas e com bancos, usadas também para estudos, onde o silêncio tinha de ser absoluto, cabendo freira acompanhante vigiar, na esteira de Foucault (1999) Cada classe tinha sua professora Com o passar tempo, as alunas internas e externas passaram a ter aulas juntas, tendo sido os bancos substituídos por carteiras individuais Relembrando o ambiente de ensino, reconstruíam as entrevistadas o cotidiano da sala de aula e algumas situaỗừes merecedoras de destaque Lr.M.: As matộrias eram portuguờs, matemỏtica, geografia, história, religião Caligrafia, nossa! com aquela letra bem estreitinha Naquele tempo usávamos os dois tipos de cadernos, os livros de leitura, tudo encapado, impecável, os lápis bem apontadinhos, sem derrubar uma sujeirinha no chão Era muito rigoroso M.L.P.B.: No 4o ano, a Irmã escalou-me pra ajudá-la nas aulas 1o ano, na cartilha A Diretora chamou meu pai e pediu para eu ir para o convento, estava certo até meu dote Meu pai não deixou, pois eu estava ali por contingência, não para ser freira Ci.: Ah, estudar Ciências? Qualquer coisa a freira mandava virar a página No catecismo, fiquei uma semana de castigo porque me atrevi a perguntar: - Nossa Senhora foi virgem antes e depois parto? O que era “parto”? A freira não respondeu e fiquei de castigo, sem poder falar com ninguém A gente estudava Ciờncias: Cabeỗa, tronco e membros! nóo podia falar de figado, coraỗóo, de mais nada, vira a folha Cel.: Da Irmó Esc guardo lembranỗa traumatizante Tinha 11 anos quando ela mandou-me esperar na sala de aula e comeỗou a falar-me sobre sexo, menstruaỗóo, homem: Vocờ nóo ộ mais inocente! Vai ficar grávida, sua barriga vai crescer, tem que fugir de homem!!!” Fiquei amedrontada e nem tinha menstruado ainda Um dia, no bonde, um homem encostou em mim e eu chorava de medo de ficar grávida Ninguém entendia porque chorava tanto! Descobri depois que a Irmã Esc falou aquilo para mim, por vinganỗa Eu tinha me revoltado por perder um passeio para ensaiar no coro com as Irmãs Bas e Esc Os depoimentos das órfãs são exemplos de como a sala de aula era espaỗo de aỗóo pedagúgica com inculcaỗóo de elementos da violờncia simbúlica e dominaỗóo, Revista Mỳltiplas Leituras, v 3, n 1, p 50-69, jan jun 2010 REVISTA MÚLTIPLAS LEITURAS 64 como preceituam Bourdieu e Passeron (1992) com evocaỗừes, em que a memúria trazia tona situaỗừes triviais mescladas com traumas Os relatos de Cel e de Ci estão envoltos em repressão da sexualidade, chegando a freira aterrorizar Cel com a possibilidade de uma gravidez, levando-a a um sentimento de medo injustificado Talvez a repressão sexual da própria freira gerasse seu comportamento inadequado Mais grave a reaỗóo ao questionamento de Ci sobre parto Supừe-se que a formaỗóo jesuớtica das Irmãs, tendo que abdicar corpo e da sexualidade, exigia uma pedagogia que inspirasse o desapreỗo absoluto pelo sexo, pela carne, pela maternidade, pelo corpo Portanto, infere-se que as aulas de Ciências representavam um grande perigo e poderiam conduzir as úrfós a lascớvias, portanto, a soluỗóo era virar a pỏgina Uma lembranỗa muito traumatizante contextualizando a sala de aula, demonstrando absoluta inabilidade para amparar e educar órfãs, emerge relato de uma das entrevistadas: En.:: Um dia, uma órfã grandona, a Lor fez xixi na cama e o colchão era de palha Daí, a Irmã Nat obrigou a menina humilhada e chorando a carregar nas costas o colchão até a classe; quando acabou a aula, levou o colchão de volta para o dormitório Quando alguém andava no corredor de lenỗol enrolado na cabeỗa era porque tinha feito xixi na cama Injustificỏveis aplicaỗừes de castigo, medo e humilhaỗóo sobre o fato de “fazer xixi” e ter de carregar o colchão ỳmido nas costas ou caminhar com a cabeỗa embrulhada no lenỗol molhado de urina Essas relaỗừes de poder perpassavam, segundo Bourdieu e Passeron (1992), técnicas pedagógicas em que as freiras impunham penitências humilhantes para o controle esfincteriano, expondo as órfãs a situaỗừes vexatúrias e de fraqueza para que atingissem o autocontrole da funỗóo de micỗóo Corroboram com a reflexóo as palavras de Dolto (1998, p 128): A enurese é sem dúvida uma linguagem O xixi na cama é corrente nas crianỗas da ASE (Assistờncia Social Infõncia) Hỏ acolhimento que ( ) seja por não levarem a sério o problema, seja por recorrerem a receitas que podem ser terríveis Cito duas ou três que me parecem especialmente sádicas: fazem a crianỗa dormir sem cobertor e no chóo para que sinta frio quando urina, ou fazem um apertado em torno pênis para impedi-la de urinar; ou ainda, obrigam a crianỗa a usar sempre o mesmo pijama e o mesmo lenỗol, para o mau cheiro a incomode Revista Mỳltiplas Leituras, v 3, n 1, p 50-69, jan jun 2010 REVISTA MÚLTIPLAS LEITURAS 65 Reconstruir os percursos sociais nas dimensões profissionais e familiares abrange situaỗừes e pontos de referờncia pelos quais passaram as entrevistadas: o fim tempo de asilada, descontinuidade de estudo, ingresso no mundo trabalho dentro ou fora de casa, mudanỗas de emprego, moradia, casamento, nascimento de crianỗas, interrupỗóo das atividades de trabalho fora, ascensóo social As recordaỗừes das egressas colocam de novo no coraỗóo sua fase de crianỗa e de asilo, o qual elas denominam escola ou colégio”, as colegas, as freiras, em que o tempo não se baliza por dias, meses, anos, mas pelo que foi significativo na reconstruỗóo de um passado, que por vezes se presentifica, com repercussừes de extrema relevõncia para a condiỗóo de casada, de dona de casa, de profissional, de doméstica, Fernandes, R.S (2002, p 82), ao pesquisar as Memórias de Menina, expõe que: A possibilidade de evocar imagens significativas vivenciadas no passado e de relacioná-las com o que é vivenciado no tempo atual revela um processo de ressignificaỗóo das vivờncias, tanto das passadas como das presentes e futuras, ou seja, que se viveu, que se vive, que se procura manter ou viver futuramente Repercussões da vida infantil na Instituiỗóo Total Reativar a memúria das egressas, com foco no passado, para descobrir como foram seus caminhos de vida pús-instituiỗóo, tornou-se uma categoria para reconstruir trajetúria nóo-linear, com seus condicionamentos, seus silờncios, suas amnộsias, apropriaỗóo de sentimentos de alegria, suas integraỗừes, momentos de repressóo ou de medo que povoavam o orfanato A decodificaỗóo dos relatos das egressas, sob a visóo da vida adulta, em cotejo com as diferenỗas e as semelhanỗas, permitiu inferir que a memúria se transmuda em história de vida com as repercussões em seus destinos, pelo tempo em que permaneceram no Asilo de Órfãs As análises de Kenski (1995, p 109) ensinam-nos que: As vozes, que atuam na recuperaỗóo da memúria, vờm mostrar a interferờncia de muitos outros fatores no momento relato O primeiro é a seletividade da memória A memória é seletiva e envolve, nóo apenas lembranỗas, mas tambộm silờncios e esquecimentos O que ộ narrado ộ, praticamente, uma reconceituaỗóo passado de acordo com o momento presente As pessoas não têm, em suas memórias, uma visão fixa, estática, Revista Múltiplas Leituras, v 3, n 1, p 50-69, jan jun 2010 REVISTA MÚLTIPLAS LEITURAS 66 cristalizada dos acontecimentos que ocorreram no passado Pelo contrário, existem múltiplas possibilidades de construir-se uma versão passado e transmiti-la oralmente de acordo com as necessidades presente É nesse momento, o da narrativa de uma versão passado, que as lembranỗas deixam de ser memúrias para tornarem-se histúrias Com lỏbios trờmulos e olhos marejados, as recordaỗừes das egressas fizeram aflorar a condiỗóo de crianỗa de asilo, as colegas, as freiras, momentos de repressão ou de medo que povoavam o orfanato, em um tempo não balizado por dias, meses, anos, mas pelo que foi significativo na reconstruỗóo de um passado, por vezes presentificado, com repercussões de extrema relevância para seus destinos Cel.: Casei com 16 anos de idade e tive filhos Muitos momentos eu tive de tristeza no meu casamento, pois meu marido bebia e era demasiadamente ciumento e, às vezes agressivo, eu me refugiava na máquina de costura, que está até hoje no canto da mesa da sala e eu a chamo de “minha companheira” Cel transpôs maquina de costura a condiỗóo de confidente, pois as circunstâncias de seu casamento favoreceram essa identidade com um objeto aceita com resignaỗóo, na sua trajetúria de vida sofrida Ci Entrei em 1945, com sete anos e saí em 1983, quando me aposentei Agora estou com setenta e dois anos Nóo esqueỗo que era marcada por causa de minha cor; ao brincar de passar anel, quem estava presa era princesa, rainha, florista Eu ficava presa, não sabia porque, era iỗỏ, besouróo A freira me ofendia com brincadeiras de mau gosto Aí eu falava: “Por que as outras são princesas, e eu era iỗỏ? Aớ comecei a pụr aquilo na cabeỗa, fui me ignorando Quando terminei o primỏrio na escola da Santa Casa, arranjavam lugar para mim na Escola Normal, mas infelizmente naquele tempo, não aceitavam meninas de cor Voltei para a Santa Casa; as irmãs precisavam de uma menina para ajudar no serviỗo de lỏ Fiquei trờs anos trabalhando pela cama, mesa e ajuda de custo das religiosas até que fizesse 15 anos para ser registrada como funcionária até me aposentar Não pude estudar mais, ninguém me incentivou A minha madrinha, criada também com as freiras, morou na Santa Casa, e me falava: “Prá que estudar? Da sua família ninguém estudou Você tem que trabalhar prá sobreviver” Não deixava a gente pensar alto, cortava Era a mentalidade da época Então, fiz até o quarto ano, quando quis fazer enfermagem, essa religiosa para quem já estava trabalhando, não deixou Hoje eu acho que fui escravizada, mas naquele tempo a gente nóo tinha noỗóo, ficava sempre devendo um favor para quem nos esticou a mão Hoje compreendo assim, naquele tempo a gente era uma máquina Fui criada paRevista Múltiplas Leituras, v 3, n 1, p 50-69, jan jun 2010 REVISTA MÚLTIPLAS LEITURAS 67 trabalhar: lavar, passar e cozinhar, estava presa no serviỗo ali me acomodei lỏ Pelo relato de Ci., a causa de sua marginalizaỗóo social e das barreiras quanto continuidade de estudos, de sentir-se escravizada- uma máquina- resumia-se categoria: “cor”, sem desconsiderar que ela não possuớa familiares que pudessem acolhờ-la A discriminaỗóo racial, em Campinas, em especial referente aos negros, foi sobejamente analisada por Maciel (1987) Na sua trajetúria profissional como serviỗal, a ỳnica porta que se lhe abriu foi a da Santa Casa, que em contrapartida usufruiu dessa marginalizaỗóo Ficou explicitada em sua vida a submissão, tendo absorvido o espírito de servir a Deus com humildade segundo os ditames das Irmãs de São José J.B.S Vivi uma frustraỗóo: Eu gostava muito de aprender tocar úrgóo Uma das freiras Asilo comeỗou a ensinar-me, mas, quando chegou uma Madre Superiora nova, cujo nome vinda Colégio de São Paulo, falou: “Órfã é prá lavar, passar e cozinhar e mais nada.” Mandou que eu parasse de tocar e repreendeu a freira que me ensinava, mandando-a exercer a sua funỗóo de anestesista Restou evidente a discriminaỗóo em relaỗóo a nóo permitir a J.B.S alộm que se considerava próprio a seu status, tendo ela se resignado, ou mesmo aceitado naturalmente, na esteira de Bourdieu e Passeron (1992) Nesse sentido, corrobora Bosi (1999,p.83): Se examinarmos, criticamente, a meninice podemos encontrar nela aspiraỗừes truncadas, injustiỗas, prepotờncia, a hostilidade habitual contra os fracos Poucos de nós puderam ver florescer seus talentos, cumprir sua vocaỗóo mais verdadeira O fato de terem podido falar e terem sido ouvidas configurou-se como um processo de interligaỗóo entre as histúrias vividas e histúrias sonhadas Algumas egressas se mantiveram solteiras, mas a grande maioria casou-se antes dos vinte anos, abdicando mundo trabalho fora lar Pouco se falou sobre a qualificaỗóo marido, deixando essa homenagem aos filhos, como resultado de uma vida doméstica salutar, permeada de valores cristóos e normas de boa educaỗóo O casamento ressaltou no percurso de algumas egressas como primordial para a mudanỗa de status social ou para alỗar-se categoria de ter uma família estruturada, entretanto, alguns depoimentos revelaram frustraỗừes a esse sonho emancipatúrio, aceitas com resignaỗóo, e, nas horas mais difớceis aflorava a influờncia da formaỗóo recebida no tempo de confinamento Revista Múltiplas Leituras, v 3, n 1, p 50-69, jan jun 2010 REVISTA MÚLTIPLAS LEITURAS 68 A amostra apresentada propiciou-nos captar o potencial que representa a reconstruỗóo das memórias pessoais para a compreensão de como as egressas se vêem na terceira idade, se ainda como órfãs submissas, e tementes a Deus, privilegiadas por terem recebido educaỗóo francesa no Asilo, ou com auto-estima resgatada Nesse sentido, as entrevistas ofereceram substratos, a partir das vozes das egressas para perceber o que elas sentiram nesse processo À medida que muitas delas iam reconstruindo a sua história pessoal, com a própria voz, passaram a se perceber como sujeitos da história de Campinas, em uma dimensão política de inclusão, libertando-se de um passado excludente, para tornarem-se autônomas, numa busca de resgate de identidade Essa libertaỗóo concretizou-se nóo pela formaỗóo recebida, emprego, casamento, mas pela voz da pesquisa, na exploraỗóo da memúria, emergindo uma forỗa interior, rompendo amarras da menos valia: Nunca poderia imaginar que alguém fosse se interessar pelo Asilo de órfãs A senhora está me perguntando coisas que ninguém nunca me perguntou” Renasceu a mulher contida naquela órfã, porque a pesquisa foi buscá-la para que não fosse mais anônima A grande descoberta foi a redefiniỗóo de seu papel feminino nóo servil, de poder falar de si mesma, de seus sonhos, vontades e proclamar alto que a pesquisa a fez protagonista da história de Campinas As entrevistadas rememoraram os tempos de crianỗa, as brincadeiras, as travessuras, os medos castigo, as aulas, as missas, a capela, o coral, as procissões de 15 de agosto Momentos de maior sofrimento, talvez por envolverem motivos mais complexos e traumáticos, foram silenciados, salvaguardando fatos da vida que, talvez, não desejassem exteriorizar As reflexões de Pollak (1989, p.8) iluminam-nos quanto aos silêncios e aos “não-ditos”: [ ] existem nas lembranỗas de uns e de outros, zonas de sombra, silêncios, não-ditos As fronteiras desses silêncios e “não-ditos” com o esquecimento definitivo e o reprimido inconsciente não são evidentemente estanques e estão em perpétuo deslocamento A grande dimensão terapờutica da pesquisa a propiciar foi esta redefiniỗóo de papel feminino da egressa não-servil, podendo falar de si mesma, de seus anseios, sonhos, vontades, nóo a serviỗo de um marido, de um patrão, mas proclamando alto que o Asilo de Órfãs de Campinas está representado como um instrumento de Revista Múltiplas Leituras, v 3, n 1, p 50-69, jan jun 2010 REVISTA MLTIPLAS LEITURAS 69 polớtica social legitimado pela reconstruỗóo de suas memórias, de suas histórias de vida Referências bibliográficas BAUDELOT, C., ESTABLET, R A escola primária segrega Paris:Maspéro, 1975 BERTAUX, Daniel L'approche Biografique: sa validité methodologique, ses potencialités Cahiers internationaux de Sociologie [S.l.: s.n], v LXIX, 1980 BOSI, Ecléa Memúria e sociedade - lembranỗa de velhos 7.ed Sóo Paulo: Companhia das Letras, 1999 BOURDIEU Pierre O poder simbólico: memória e sociedade Lisboa: Difel, 1989 _ Pierre; PASSERON, Jean C A Reproduỗóo 3.ed Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1992 CAPELATO, M Helena R Multidões em cena propaganda política no varguismo e peronismo Campinas: Papirus, 1988 CORAZZA, Sandra Mara História da infância sem fim Rio Grande Sul: UNIJ, 2000 CHARTIER, Roger A A história cultural: entre prỏticas e representaỗừes Lisboa: Difel, 1990 CHRONIQUES de la Congrộgation des Soeurs de Saint-Joseph de Chambéry Chambéry: Impriméries Réunies, 1936 CONSTITUIÇÕES das religiosas de São José de Chambéry, sob a Proteỗóo da Imaculada Móe de Deus Roma: Casa Generalớcia, 1951 DERMATINI, Zeila de B F Trabalhando com relatos orais: reflexões a partir de uma trajetória de pesquisa In: LANG, Alice B da S G (org.) Reflexões sobre a pesquisa sociológica Sóo Paulo: CERU, 1992 (Coleỗóo Textos Sộrie 2, 3) DUARTE, Rafael Campinas de outrora São Paulo: Andrade & Mello, 1905 DUBOIS, Philippe O Ato Fotográfico Campinas/SP: Papirus, 1999 FERREIRA, Marieta de Moraes Histúria Oral: um inventỏrio das diferenỗas In: Entrevistas: abordagens e usos da História Oral Rio de Janeiro: FGV, 1994 FOUCAULT, M Vigiar e punir Petrópolis: Vozes, 1999 História da sexualidade, 2: o uso dos prazeres Rio de Janeiro: Graal, 1990 As palavras e as coisas Traduỗóo de Salma Iannus Muchail Sóo Paulo:Martins Fontes, 1995 Revista Múltiplas Leituras, v 3, n 1, p 50-69, jan jun 2010 ... continuidade de estudos, de sentir-se escravizada- uma máquina- resumia-se categoria: “cor”, sem desconsiderar que ela não possuía familiares que pudessem acolhờ-la A discriminaỗóo racial, em Campinas,... vermelhas - símbolo bom comportamento semanal -, infere-se que essa foto foi tirada em domingo, antes ou depois da missa Não há órfãs negras ocupando a primeira e segunda fila, situando-se, de... p.8) iluminam-nos quanto aos silêncios e aos “não-ditos”: [ ] existem nas lembranỗas de uns e de outros, zonas de sombra, silờncios, não-ditos As fronteiras desses silêncios e “não-ditos” com

Ngày đăng: 05/01/2023, 10:14

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